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- [Debate] Mangá Yuri não é o mesmo que Mangá Lésbico
Posted by : Mazaki89
quarta-feira, 2 de agosto de 2017
Antes
que vocês pensem que enlouqueci e que estou tentando destruir a
auto-estima de nossa preciosa comunidade, gostaria de fazer o convite
para que pensássemos um pouco sobre esse tema em conjunto para que
assim possamos chegar ao ponto em que o título deste texto fará
todo o sentido.
Certo?
Todo mundo respirando e com o pensamento afiado? Vamos começar
Mangá
Yuri não é o mesmo que Mangá Lésbico
Yuri
é um gênero de história japonesa com origens no começo do século
XX. Esse tipo de obra não surgiu deliberadamente para fazer uma
representação da realidade lésbica japonesa, mas sim como uma
fusão entre elementos de homossocialidade feminina juvenil,
influenciada por diversos fatores que vamos falar a respeito, com a
necessidade de escapar de uma censura social imposta às obras de
consumo juvenil da época.
Homossocial,
eu disse, não homossexual. E este é o primeiro ponto para
entendermos a diferença que existe entre o yuri e a ficção
lésbica. Homossocialidade tem haver com o comportamento social de
uma pessoal. Na prática uma mulher homossocial é aquela que só se
relaciona socialmente com pessoas do seu sexo, o mesmo para homens.
(E daí vocês podem imaginar que tem muitos homens heterossexuais
que tem atitude homossocial, pois só se relacionam socialmente com
homens)
Vamos
elaborar um pouco isto. No começo do século XX ocorreu uma explosão
na quantidade de escolas femininas no Japão. Instituições
refinadas cujo objetivo era a formação de jovem mulheres educadas,
de comportamento recatado e preparadas para assumir suas funções na
sociedade como. . . esposas perfeitas. Sim, no começo do século
passado era essa a única perspectiva de uma adolescente japonesa:
terminar a escola e se casar com o homem escolhido por sua família.
Pode parecer algo absurdo para os tempos de hoje, mas é preciso
entender que era algo mais do que padrão naquela época e que foi se
quebrando graças à luta pessoal e social de muitas mulheres, não
só no Japão como em várias partes do mundo em que a mulher era
limitada à vida em casa.
Um
ambiente cheio de adolescentes que não podia se relacionar com
homens até chegar o casamento já seria um terreno fértil para que
alguns grupos desenvolvessem um comportamento não só homossocial
como de fato homossexual, mas à essa equação também se soma um
fator determinante para nossa historinha do gênero yuri: a cultura.
O
grupo teatral Takarazuka foi fundado em 1913 e tinha como preceito a
participação exclusiva de mulheres atuando em todos os papéis.
Algumas atrizes se especializaram em atuar nos otokoyaku (papéis de
homem, literalmente) criando imagens andróginas para papéis
masculinos de destaque. Acontece que as apresentações do Takarazuka
caiu no gosto das jovens estudantes que paravam para assistir as
apresentações no caminho para casa (isso ainda nos primórdio do
grupo). Apesar da representação teatral, o fato era de que se criou
uma admiração muito grande, no sentido romântico, por personagens
homens sendo representado por mulheres, em uma androginia que (e aqui
é um palpite pessoal) em muito influenciou a cultura nipônica como
um todo no decorrer do século XX.
Em
paralelo tivemos a crescente de obras shôjo, seja em contos ou
quadrinhos, que exploravam relações de extrema proximidade afetiva
entre garotas em colégios femininos. Um paralelo com o que ocorria
na realidade, onde a necessidade de um conforto afetivo gerava esse
tipo de comportamento entre grupos dentro das escolas femininas.
Nobuko Yoshiya foi uma contista de grande influência nas publicações
shôjo. Ela era lésbica, de fato, e uma defensora dos direitos
femininos, mas sua obras tinham como maior característica a
capacidade de mostrar o amor entre mulheres que tinham como destino
separar-se para depois levar suas vidas adultas como esposas
“normais”.
Essas
narrativas faziam muito sucesso entre as leitoras, independente de
sua orientação, e as editoras exploraram esse elemento cada vez
mais. Porém chegou o ponto em que essas publicações foram
consideradas subversivas e proibidas (“Oh, estão ensinando nossas
filhas a se desviar do caminho puro e correto!”, algo desse naipe).
Esse
tipo de obra e de jovens que apresentam comportamento abertamente
homossexual foram taxados como Classe S, um tema que merece abordagem
própria em outro momento no blog, mas fica a aqui a citação. As
garotas Classe S sofriam certo preconceito mesmo dentro de suas
comunidades escolares por “passarem do limite” e casos de duplo
suicídio por duas garotas foram registrados em decorrência dessa
rotulação pesada.
Voltando
ao mercado a resposta de autores e editores à censura de obras com
lesbianismo explícito não foi menos do que muito inteligente:
tornaram os Classe S praticamente impossíveis de diferenciar dos
shôjo “normais”. Imagens românticas muito mais sutis, muito
mais homossociais do que realmente homossexuais. Finais de história
onde as personagens se formavam e se tornavam ainda assim esposas
perfeitas, deixando aquele companheirismo inacreditável com a
amiguinha como uma lembrança doce da juventude se tornaram muito
mais comuns.
Agora,
depois dessa passada pela história, será que não conseguimos fazer
relações muito diretas entre os mangás e animes yuris mais antigos
e “clássicos” com o cenário de formação do gênero?
Claro
que a palavra Yuri em si surgiu para referenciar-se à cultura
lésbica japonesa, porém, mercadologicamente as coisas não
funcionam no preto e branco. O termo yuri coube como uma luva para
diferenciar aqueles mangás que, já no terceiro quarto do século
XX, não tinham mais uma raiz clara e a necessidade de fusão ao
shôjo convencional diminuía com a mudança do pensamento e,
principalmente, da forma de consumir do japonês.
Yuri
atualmente é um termo guarda-chuva que abarca tanto histórias que
descendem dos antigos Classe S, como obras deliberadamente lésbicas.
Dentro desse guarda-chuva também existem as obras voltadas ao
público feminino e ao público masculino, que são distintas e tem
características distintas.
Ainda
que aos nossos olhos de estrangeiros isso tudo seja uma coisa só o
fato é que isto está longe de ser verdade. Falar que algo é
yuri não é falar que é necessariamente lésbico. Yuri carrega em
si todas as características do Classe S, onde tudo é difuso, onde
talvez tudo seja apenas homossocialidade, ou não, ou onde mulheres
possam ser admiradas tanto por serem muito femininas ou carregarem em
si características de príncipes encantados (Opa!).
É
preciso entender e respeitar as diferenças de conceito que estão
enraizadas no gênero yuri. Dizer que o yuri não representa a
comunidade lésbica como deveria é simplesmente impor um papel ao
gênero que nunca foi dele. Assim como dizer que “não é yuri de
verdade se não tiver beijo” é uma distorção completa dos
valores dessas obras.
Ou
seja, Yuri e Lésbico não são sinônimos. Eles não são a mesma
coisa.
Aliás
existe uma expressão japonesa bem melhor para dizer que algo é
lésbico que é Rezu (レズ,
literalmente Lez). Muitos yuris contemporâneos são Rezu, mas isso
não é uma regra.
Por
fim gostaria de lembrar que não estou dizendo que a cultura lésbica
não possa se apropriar do yuri como parte sua, muito pelo contrário.
O problema é quando se utilizam conceitos ocidentais sobre o que é
a cultura lésbica e como ela deve ser representada para fazer o
julgamento do yuri, acreditando que eles são equivalentes perfeitos.
Busquei tornar isso mais claro com a construção histórica do yuri,
mas é claro que existem outros fatores sociais e históricos mais
próximos que ainda podem ser usados para completar essa figura
complexa que é o gênero.
Quando
lemos um quadrinho lésbico asiático de fora do Japão, como os
trabalhos da Ratana Satis é visível a diferença de tom e conceitos
que regem seu enredo. Seu pensamento é muito mais próximo do que
nós entendemos por obra lésbica e isso é bem óbvio por ser o
mesmo objetivo da autora.
Mesmo
que o yuri esteja em um contexto que cada vez se torna mais
semelhante ao nosso, com a modernização do pensamento japonês em
relação à homossexualidade e as maneiras de expressar isso,
devemos sempre lembrar que o legado histórico-cultural de um povo
não é algo que se pode deixar de lado para começar uma nova
página.
Espero
ter conseguido contribuir para a compreensão da questão. Fazia
muito tempo que queria trazer um texto que tratasse da questão. Se
vocês, queridas leitoras e leitores do KaS tiverem interesse,
podemos pensar em mais pautas com essa pegada mais séria para trazer
ao debate.
Enfim,
deixem seus comentários aí para que possamos continuar essa
conversa. Vocês já tinham parado para pensar alguma vez sobre a
diferença entre o yuri e a nossa visão de história lésbica? Acham
que não deveria existir essa diferença, ou veem nisso a
oportunidade de entender mais sobre o yuri? Digam aí e até a
próxima!
Bibliografia
NAGAIKE,
Kazumi. The Sexual and Textual Politics of Japanese Lesbian
Comics : Reading Romantic and Erotic Yuri Narratives. Disponível
em Japanese Studies
(http://www.japanesestudies.org.uk/articles/2010/Nagaike.html)
Acesso em 02 de agosto de 2017.
THOMPSON,
Kimberly D. Yuri animation: Queer identity and ecofeminist
thinking. Disponível em The Scholarship
(http://thescholarship.ecu.edu/handle/10342/2913)
Acesso em 02 de agosto de 2017.
MARTIN,
Fran. et al. AsiaPacifiQueer: Rethinking Genders and Sexualities,
University of Illinois Press, 2008.
Acho fascinante entender mais sobre a construção histórica não apenas do gênero literário, mas também das relações no Japão que são retratadas nas obras. Nunca tinha pensado nessas diferenças, e não sabia desse grupo teatral. Acho que é algo meio parecido com os teatros onde apenas homens podiam atuar, inclusive fazendo papel de personagens femininas - o que me parece ter sido grande influência na cultura andrógina japonesa também. Infelizmente não lembro onde eu li sobre isso.
O seu artigo foi realmente interessante! Eu sempre percebi essa diferença entre as produções yuri e as lésbicas. Bem,sempre não, pois quando eu era criança não conseguia perceber nem homossocialidade, nem homoafetividade e nem homossexualidade em Sailor Moon e Sakura Card Captors haha. E é devido a essa sutileza, esse enfoque homossocial que você explicou muitíssimo bem a origem. Estou rasgando seda porque eu gostei muito!!! Tirou muitas dúvidas que eu tinha e não via material disponível sobre este assunto.
Mata ne ;)
Nossa, sensacional, amei. Muitíssimo obrigada
mano, simplesmente incrível isso me esclareceu tantooooo, amei. obrigada.
Gostei do texto. Eu mesmo não tinha reparado essas coisas sobre Yuri / GL.
Então quer dizer que é por isso que tem tanto Yuri com "um pé" dentro de um "formato" de shoujo escolar, certo?
Sobre os mangás Rezu e Shoujo "S" tem como falar deles também e se possível, citando exemplos?
É isso, até mais!