Olá a todos!
Já tínhamos comentado em algumas oportunidades sobre a intenção de trazer neste ano alguns conteúdos criativos próprios para o site. Enquanto o quadrinho Constelação está em estado vegetativo (mando vibes positivas para que a Se-chan termine de editar o capítulo de uma vez) vamos com literatura com um conto que na verdade é a primeira parte de uma história de quatro capítulos.
Intocável, ou "Um lugar entre o passado que não me pertence e o futuro que posso alcançar" é uma história de ambientação fantástica, no mundo de Therimah, mas que não trata de fantasia por si. Aqui o enredo tem relação com política e, claro, romance entre garotas (que é o que nos interessa!). Tenho planejado escrever mais três partes de história, mas como cada uma delas é independente, podem se sentir tranquilos para ler esta aqui.
Sinopse: Na capital da poderosa nação de Astran, Catherin Sthargh se verá envolvida em um confronto político perigoso, envolvendo o Partido Nacionalista e uma força separatista dentro do Senado. Apesar de ser apenas uma estudiosa, Catherin irá confrontar Anita Stradovaus, uma pessoa que tem muito mais em comum consigo do que um parentesco distante.
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Intocável
ou “Um lugar entre o passado que não me
pertence e o futuro que posso alcançar”
Parte
1 - Crime
— Só
você pode fazer isto, Catherin. — foram as palavras que sentenciaram meu
envolvimento naquele esquema impronunciável.
O
lugar era um bar dentre tantos na periferia de Adram, Capital de Astran, uma
das nações livres que obedeciam aos tratados de Doradem. Estava quente ali
dentro, apesar da noite de outono típica lá fora. Lanternas amarelas iluminavam
com irregularidade as dezenas de mesas. O cheio de cerveja barata e cigarro
preenchia tudo, me levando a tossir volta e meia. Praticamente todos ali eram
homens à exceção das garçonetes de avental desbotado e decotes proeminentes.
Talvez até houvesse algo a se aproveitar de tal local obscuro, mas eu nunca
frequentaria um lugar como aqueles se não tivesse sido convidada por meus
camaradas.
Ou
melhor, se não tivesse sido coagida por dois conhecidos de minha vizinhança
materna a acompanhá-los. Pelos deuses tivesse sido capaz de escapar naquela
noite:
—
Vocês não podem estar falando sério. — foi a primeira coisa que respondi àquela
delegação sumária. — Eu sou uma acadêmica, uma matemática, não uma assassina!
— Fale
baixo, Sthargh! — chiou Oswald Erthta, um homem de vinte e tantos anos e
cabelos já raleando. — Por Simes, podemos ser ouvidos por algum policial
disfarçado.
Senti
um arrepio correr minhas costas àquele alerta. Poderíamos estar sendo vigiados?
Que tipo de pessoas seriam vigiadas pelas autoridades com tamanha discrição?
Será que meu futuro acadêmico já estava comprometido antes mesmo de acatar a
tarefa absurda que tentavam me incutir?
— Você
não entendeu ainda a situação que estamos passando, Strargh. — retomou Robinson
Goes, o homem louro e de barba que fora quem dissera as palavras cruciais
anteriores. — Não há tempo. Você é a pessoa mais adequada que existe em toda
esta cidade para dar cabo daquela piranha da Stradovaus.
—
Piranha. . . — repeti, apertando as sobrancelhas em desagrado ao nível do
insulto proferido.
—
Todos sabem da história da sua família com o Stradovaus. — disse Oswald. — Você
pode ver este momento como a derradeira vingança pelo que eles fizeram sua avó
e sua mãe passarem. . .
— Sem
sandices desse tipo, Erthta. — cortei-o, exasperando-me genuinamente. — Não
busco nenhuma vendeta por conta do passado sombrio que assola o nome da minha
família. Vejo em meu esforço próprio para progredir em minha carreira como uma
forma de deixar estes assuntos do passado para. . .
— Bobagem.
— interpôs-se Robinson. — Tua avó foi deixada na miséria pelo Conde Stradovaus.
Tua mãe vive adoecida desde nova pela precariedade dessa vida de periferia.
Poderia ser diferente se não fosse o mal-caratismo daquele velhote. Dizer que
não tem apetece tirar a vida da filha legítima daquele paspalho é uma inverdade
das mais descaradas, Catherin.
Engoli
a saliva àquelas palavras. Lembrar do estado sempre lamurioso de minha mãe era
algo covarde da parte do camarada. Por Simes eu havia crescido em uma casa onde
o nome da família Stradovaus era maldito. Ainda assim a minha luta contra
aquela sede de vingança brutal era genuína. Eu não iria matar uma desconhecida
ainda que, em papeis técnicos, ela fosse. . .
— É
sua tia, mas ainda é uma Senadora piranha que quer destruir nossa nação. —
colocou Oswald, com os punhos serrados sobre a mesa. — Além disso é uma
Stradovaus. Ela merece uma morte horrível por portar tanta heresia em um só
corpo.
— Eu
sequer sei qual é sua aparência, muito menos como encontrá-la. — meneei,
sentindo meus braços tremerem pelo recuo perigoso que meu discurso estava
fazendo. Já falava como uma assassina preguiçosa em potencial.
— Ela
está no prédio do Senado. — disse o louro. — Seu escritório é o terceiro do
segundo andar, no quadrante norte. É a única que ficará lá hoje, pois está se
preparando para o Golpe contra o Estado que cometerá na sessão de amanhã.
— Você
é uma acadêmica de alta consideração. — falou Oswald Erthta, após bebericar sua
cerveja. — Uma das raras pessoas que jamais será parada por qualquer segurança
mesmo que fique a perambular nos corredores do Senado à esta hora da noite.
Olhei
para minhas mãos trêmulas ao colo. Eu não tinha nada a ver com aquilo, mas
ainda assim sentia que não havia escapatória possível:
— Mas
como irei fazer isso? — perguntei, levantando os olhos para os dois homens à
minha frente.
— Com isto.
— disse Erthta, puxando do bolso da calça algo embrulhado em um tecido marrom cheirando
a óleo. — Um disparo silencioso que irá salvar nosso país de ser desmantelado.
Olhei
para o embrulho pouco discreto. A forma do cano fino da pistola era aparente
mesmo a uma primeira vista. Levantei a cabeça e os dois homens do Partido
Nacionalista me encaravam sem sequer piscar. Minha pálpebra tremeu como em
poucos cálculos fazia enquanto eu esgotava todas as minhas possibilidades
mentais de escapar daquele lugar.
Fechei
os olhos e inspirei fundo. Com as duas mãos recolhi o pacote maldito, escondendo-o
com receio em um dos bolsos internos do meu casaco:
— Você
vai ficar bem, Catherin. — disse Erthta, incrivelmente mais doce de um momento
para o outro. — Ninguém vai pegá-la, e também não haverá como provar
posteriormente. Tome cuidado para não ser vista indo para o quadrante norte e
sua vida de estudos seguirá intocada.
Ele
levou uma mão para tocar meus finos dedos sobre a mesa. Recuei os braços e
levantei, respirando com força para manter um mínimo de firmeza na voz:
— Se
algo me acontecer, pode ter certeza de que acontecerá muito pior a vocês, seus
covardes. — ameacei, com a voz falha. Virei as costas e fui em direção à saída,
sem esperar para saber as reações daqueles machos malditos.
Como
haviam dito, o porteiro da entrada principal do Senado foi extremamente cortês
quando apresentei meu documento oficial de ocupação. Falei-lhe que iria para a
biblioteca no setor sudeste, onde ouvira da existência de alguns tomos de
Cálculo Diferencial muito peculiares e pude ver seus olhos de leigo brilhando
em admiração. Em situações comuns eu teria um certo orgulho daquela reação, mas
naquela noite eu apenas sentia um misto de náusea e leve tontura constantes.
Passavam
das vinte e duas horas. Não havia ninguém pelos corredores. Por precaução fui
realmente até a tal biblioteca e peguei alguns livros de cálculo trigonométrico
e números imaginários e espalhei na mesa mais próxima à saída. Um álibi para
caso alguém viesse a questionar meus motivos daquela visita. Também utilizei
uma saída alternativa da sala de estudos, sendo o mais silenciosa o possível.
Se meus nervos já estavam alterados antes deste ponto, daqui em diante chegava
a assustar-me com o farfalhar do tecido da minha capa púrpura sobre meus
joelhos.
A
pistola que Erthta me entregara viera com seis capsulas para serem inseridas no
pente removível no cabo da arma. Era projéteis minúsculos, feitos de metal
acobreado. O cano fino era prateado e o cabo inteiro ornado de feições florais
agressivas. Eu caminhava com uma das mãos no bolso, segurando a arma, sentindo
as pontas dos dedos a textura fria dos enfeites.
As
luzes dos corredores dos pavilhões leste e norte estavam apagadas. Apenas a luz
que vinha dos postes da rua e entrava pelas largas janelas de vidro iluminavam
alguns trechos.
A
certa altura parei meu caminhar cuidadoso. Estava no segundo piso da ala norte
e uma fresta de luz amarela escapava por debaixo da porta de uma única sala.
O
coração batia na garganta, quase me impedindo de respirar. E se ela estivesse
com seguranças? Era óbvio que deveria, sendo uma figura pública tão polêmica.
Os idiotas nacionalistas não tinham pensado sequer nisso? Ou talvez tivessem
lhe enviado ali exatamente para que eu fosse descoberta e morta. Seria a mártir
da luta do povo contra o Senado traidor.
Ainda
dava tempo de voltar. Ainda dava. . . Minha mão suava o cabo da pistola. Por um
momento pensei que não fosse conseguir respirar. Soltei um pouco aquele ferro
maldito e balancei os braços, respirando e fechando os olhos.
Tinha
chegado longe demais para recuar. Puxei o capuz folgado do longo casaco sobre a
cabeça e me coloquei diante da entrada. Voltei a segurar o cabo da pistola e,
após uma contagem silenciosa, girei a maçaneta e dei um empurrão violento na
porta.
— Mas
o que?! — exclamou a mulher sentada por detrás de uma larga mesa tomada de
papéis. Eu dei dois passos para dentro e ela se levantou de um salto quando viu
a minha figura.
Eu
tinha a pistola apontada para senadora:
— O. .
. — tentou dizer Anita Stradovaus, em choque.
Porém
seu choque não poderia ser maior do que o que eu mesma estava sentindo ao
encarar seu rosto arredondado e cabelos cacheados.
Meu
braço com a pistola foi baixando assim como meu queixo:
— Quem
é você? — perguntou a senadora, tendo uma estatura baixa e um vestido rosado
coberto por um sobretudo magenta.
Minha
garganta estava seca. Fiz força para conseguir balbuciar algo:
—
Naisha? — foi o nome que saltou quebrado dos meus lábios. O choque pareceu se
tornar ainda maior na expressão de terror já presente na Stradovaus.
—
M-M-Mas. . .
Puxei
o capuz. Ela deu um grito, levando as mãos ao rosto. Por puro instinto eu
fechei a porta atrás de mim. Sequer lembrava mais do que estava fazendo ali:
—
Catherin? Catherin o que você. . . — ela tentou perguntar.
—
Naisha. . . ou melhor, Anita Stradovaus. . . — eu falei, sentindo as pernas
fraquejarem. Tropecei para frente e me recostei no largo sofá ao centro da
sala. — Anita Stradosvaus. . .
—
V-Você. . .
— Você
mentiu sua identidade para mim durante aqueles dois meses. — falei,
encarando-a.
—
Claro que menti. — disse Anita. — Acha que uma pessoa como eu pode sair de
férias para o litoral, viver um romance de veraneio e embebedar-se como
qualquer outro? Minha vida sempre corre risco. . . Exatamente como agora.
—
Romance de veraneio. . . — repeti. Pelos deuses, eu não sabia se tinha vontade
de chorar ou descarregar toda aquela arma de uma vez naquela mulher maldita.
— Você
sempre soube. . . — ela disse, assombrada. — Sempre esteve no meu encalço. . .
Deve ser um desses loucos nacionalistas. Escória. . .
— Não.
Eu não sabia. — afirmei, levantando. — Por Simes, eu não sabia. Eu nunca. . . —
as palavras seguintes eram ardidas demais para saírem da minha garganta já tão
seca.
—
Então porque está aqui?
— Eu.
. . — olhei para a arma na minha mão. — Eles precisavam de alguém para acabar
com a piranha separatista.
—
Piranha?!
— É
como eles te chamam! Os do Partido!
Naisha,
digo, Anita caminhou até mim. Estava lívida, fora de si. Já tinha visto aquela
imagem antes, na única discussão que tínhamos tido nos dois longos meses em que
nossa paixão “de veraneio” havia florescido.
Eu
tinha me envolvido com Anita Stradovaus. Stradovaus.
Paf.
Ela me
esbofeteou na cara:
— Você
que é uma piranha, Catherin Sthargh! — ela esbravejou. — Uma piranha que me
seduziu e que agora vai me matar em nome dessa gente estúpida do Partido
Nacionalista! Dessa sua gente estúpida!
— Eu
não. . . ! — engasguei falando. — Eu não sou do Partido, eu só. . . Por Simes,
você está destruindo Astran. Qualquer um na rua que tenha a chance vai querer
te dar um tiro no meio da cabeça.
Ela
estreitou os olhos de maneira perigosa. Inspirou fundo:
— Quem
está destruindo este país são vocês, conservadores egoístas de Adram que acham
que todos neste país tem a maravilhosa qualidade de vida que vocês têm aqui. —
ela entoou.
Eu
estava tonta demais. Sentei no sofá e massageei a face do rosto atingida com a
mão que ainda segurava a pistola:
— Do
que está falando?
—
Estou falando da guerra na fronteira com Zheiwan. — ela respondeu, ganhando uma
convicção imensa àquela minha abertura. — Estamos a dez anos arrastando uma
guerra que está acabando com todo o tesouro do país. Além disso as pessoas
daquela região vivem uma miséria e terror inigualáveis.
— Ah.
. . — perdi as palavras diante daquilo. De fato havia uma guerra em andamento
há mais de uma década no norte do país. Os aumentos de impostos sempre eram
justificados com os custos do conflito. Haviam boatos sobre os aviões dos halz
e suas bombas químicas, mas eu nunca tinha lido muito a respeito nos jornais.
Sempre
tinham notícias, mas aparentemente a rotina da batalha me tornara insensível ao
assunto:
—
Vocês Nacionalistas querem manter a unidade nacional, mas não enxergam que
muitos de nós morrem todos os anos de fome, de doença e vítimas dos bombardeios
do outro lado. — seguiu Anita, com a expressão de concentração, seus olhos
fuzilando os meus. — Já faz tanto tempo dessa guerra que nem há mais um lado de
cá e um de lá, apenas morte.
Minha
garganta estava seca:
—
Então o seu projeto. . .
—
Projeto que assino, mas que é de autoria de inúmeros representantes deste país
e do nosso vizinho. — corrigiu-me a senadora. — Este projeto visa sim mudar a
configuração do território de Astran. Vamos tornar toda aquela região uma
região independente administrada por ambos os lados.
—
“Diminuir nosso território”. — falei, mais como uma repetição dos mantras que
repetiam nas reuniões do Partido. Anita também sabia daquele slogan.
—
Diminuir nosso território e cessar a matança de inocentes. — ela sentenciou.
Me
calei com isto. Não iria cair na tentação de um negacionismo escapista. Eu não
era um dos fanáticos do Partido:
—
Vocês Nacionalistas amam a bandeira deste país, não as pessoas que aqui vivem.
— ela acusou. Não lhe encarei para responder.
— Eu
não sou um deles. Eu fui coagida a agir em nome da causa. — defendi.
Stradovaus
pareceu satisfeita com meu estado de derrota moral. Bufou e sacudiu os ombros
como se tentasse diminuir a tensão imensa da situação. Caminhou de volta A sua
mesa e sentou, apoiando os cotovelos sobre o tampo da mesa.
Permanecemos
no silêncio barulhentos dos pensamentos individuais por longos minutos:
—
Nunca pensei que me envolveria com uma assassina. — ela colocou, azeda.
— Eu
não sou uma assassina! — respondi, me exaltando de imediato.
— Não
parece, olhando deste ângulo.
Eu
ainda estava em pé, com a pistola firme na mão direita. Soltei a arma sobre a
mesinha de centro como quem tenta se livrar de algo repugnante. Caminhei até a
poltrona diante da larga mesa de Anita. Me soltei sobre o acolchoado como se
meu corpo pesasse três vezes mais do que o usual:
—
Mesmo que você não fosse a senadora separatista já mereceria tomar um tiro no
meio da cara por ter me usado como fez. — falei, o amargor subindo do esôfago
para minha boca e nariz. — Romance de veraneio. . .
— Eu a
usei? — indagou ela, ríspida. — Você que me espionou e agora vem com essa
conversa.
Suspirei
e escondi o rosto com uma das mãos. Minhas têmporas latejavam de tudo o que
estava acontecendo. Eu sabia que seria a pior noite da minha vida, mas jamais
poderia prever que seria uma agonia tão mais longa e pessoal.
Eu já
tinha jurado amor pela filha legítma de Stradovaus. Uma razoável porção do
mesmo sangue circulava em ambas as nossas veias, mas isso Naisha sequer sabia.
Digo,
Anita:
—
Você. . . — começou a senadora, com um tom muito mais sóbrio do que ouvira até
então. — Você realmente não estava lá para espionar?
Não
levantei a cabeça. Dentro dos meus olhos serrados luzes explodiam no escuro das
minhas pálpebras:
— Eu
te disse quem eu era. Uma matemática alocada na Universidade de Astran. —
murmurei.
— Eu
sei. Pelos deuses, eu fiquei paranoica depois que voltei para cá. — ela falou.
— Pensava na possibilidade de encontrá-la em uma esquina. Estragar todo o
disfarce.
— É,
nos encontramos em uma esquina bem inesperada. — afirmei. Nos meus pensamentos
eu fazia um esforço enorme para colocar de lado o que só eu sabia.
— Jamais
aconteceria se você não fosse levada pela conversa fiada desse Nacionalistas.
Meus
olhos se ergueram para Anita:
— E
nem se você não tivesse mentido sobre tudo. — sibilei. — Romance de veraneio. .
. Que merda mesmo.
Levantei
num movimento brusco. Eu não ia matar aquela mulher. Tinha que sair dali.
Provavelmente sair da cidade, do país:
—
Espera, onde você vai? — Stradovaus questionou quando me viu virar e dar os
dois primeiros passos para longe.
— Para
onde eu vou? Vou embora. — era insuportável. Minha dor física misturava
emocional e me fazia explodir de raiva com ela. — Vou para o raio que me parta,
porque ameacei de morte a excelentíssima piranha separatista. Que diabos eu
soubesse naquele dia que iria me desgraçar dessa maneira, eu jamais. . .
Eu
falava enquanto encarava a porta da sala, cuspindo todo o rancor que estava
entalado no peito. Porém minha enxurrada de ódio congelou na garganta quando
senti algo tocar no meio das minhas costas. Um peso:
— Calma.
— sussurrou Anita, tão baixo que eu só pude ouvir pela proximidade. Ela tinha a
cabeça encostada em mim. — Eu não. . . Você não precisa fugir pra lugar nenhum.
Não vou complicar a sua vida.
Me
afastei e me virei para encará-la de cima. Seu rosto era delicado, seus traços
tão suaves como eu lembrava. Minha cabeça já atordoada teve que lidar com mais
a força dos impulsos que a proximidade de Naisha incitava.
Naisha.
Naisha. Eu tinha repetido tantas vezes um nome falso. Aquele som ainda me soava
tão doce e erótico. . . Porém:
—
Romance de veraneio. . . — repeti uma vez mais. Os olhos já proeminentes dela
se abriram mais.
—
Catherin. . . — ela quis dizer, mas eu não queria ouvir.
— Já
faz quase um ano desde aquele verão no litoral de Neocidi. — retomei, sem
conseguir mais medir o que estava falando. Parecia que os pensamentos haviam
desistido de mim, deixando apenas um zunido incômodo para trás. — Passei quase
todo esse tempo pensando se um dia iria te encontrar de novo.
Ela
baixou os olhos claros dos meus. Apertou a ponte do nariz com os dedos,
suspirando:
— E
tudo foi uma mentira. Uma aventura de férias. — segui, sentindo o esgotamento.
— Não
foi tudo uma mentira. — ela rebateu, parecendo também já cansada.
— E o
que não foi? — desafiei. Ela voltou a me encarar e eu podia ver o brilho no seu
olhar. Parecia que não havia passado nenhum dia desde que vira aquela cor pela
última vez.
— Isso
não foi. — ela respondeu, indo ao gesto.
Nossos
lábios se tocaram quando ela puxou meu casaco para baixo. Eu hesitei,
relembrando em um segundo todas as coisas que já tinha pensado desde que
entrara naquela sala. O tamanho da gravidade do que estava acontecendo. A
traição aos idiotas do Partido. A humilhação ao nome da minha miserável
família.
Mas eu
desejava aqueles lábios. Os lábios de Anita Stradovaus. Eu queria tudo.
Mergulhei
aquele toque. Abracei seu corpo delicado, apertando-o contra mim. Senti cada
átimo da presença dela como uma realidade estupenda, inebriante, quase
enlouquecedora. Um único instante de lucidez me conteve no desespero da minha
carência:
—
Maldita. . . — falei de voz quebrada, encarando o rosto ainda tão próximo e
lívido dela.
—
Catherin. . . — ela correspondeu. Seu tom era de uma agudeza quase
inapropriada. — Me perdoe.
— Por
me enganar ou por tentar destruir o país? — questionei, deixando um sorriso
escapar-me por desatenção.
— Eu
nunca pediria perdão por salvar o que resta do Norte. — ela rebateu, com toda a
seriedade. — Portanto me perdoe por ter sido covarde.
Soltei-a
de mim, usado a minha renovada capacidade de raciocínio para tentar avaliar a
situação:
— Os
camaradas do Partido jamais irão me perdoar. — disse. — Minha vida será
transformada em inferno por ser uma covarde.
— Por
que não vens comigo para o Norte? — perguntou Anita e eu lhe respondi com uma
expressão de perplexidade. — A emancipação assistida da província contará com
um governo local mínimo ao qual eu irei me unir em regime permanente. Uma
intelectual como você também poderá fazer muito para reerguer aquele povo.
— Eu?
Mas sou apenas uma matemática.
—
Precisaremos de cálculos para construir estradas, ferrovias, pontes. — afirmou
Stradovaus. — Além disso aquela região está devastada. Os jovens vivem para
tentar conseguir comida. Lhes falta toda sorte de estudo imaginado. Mentes como
a sua podem fazer muito por um povo nessas condições.
Me
afastei de Anita, dando a volta na mesa de centro e sentando diante da mesma. A
pistola com a qual iria cometer um crime estava ali, brilhando às luzes
químicas da sala. Parecia fazer anos desde que eu estivera no corredor escuro,
ponderando se fugiria ou cumpriria a imposição do Partido. De assassina agora
me via como mente recrutada para ajudar na reconstrução de um novo país que
nascia da devastação da guerra.
E isso
ao lado de Anita Stradovaus. Stradovaus:
— O
que diz? — perguntou-me ela quando alonguei o momento de silêncio.
Encarei
seus olhos verdes. Em algum ponto em me sentia desprezível, mas na maioria
havia uma vontade primitiva de viver, como se tentasse emergir das profundezas
da água fria:
— Parece
uma boa proposta se for para ficar mais do que um verão lá.
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